Redução da maioridade penal e proibição de retrocesso

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O debate acerca da redução da maioridade penal vem trazendo uma série de argumentos pró ou contra; os primeiros vinculados à já conhecida falência do sistema prisional brasileiro, à ilegalidade na qual atuam as Fundações de Atendimento Socioeducativo – FASE, e o fato de que, em verdade, os menores de dezoito anos protagonizam a posição de principais vítimas da violência, ao invés de autores. O outro lado da moeda clama pelo fim da impunidade, pelo fato de que os adolescentes praticam crimes violentos e ficam por, no máximo, três anos privados de sua liberdade e porque, se têm a possibilidade de votar, devem, também, poder ser responsabilizados criminalmente.

No que se diz respeito a dados e estatísticas, a grande verdade é que aqueles que se referem à quantidade de delitos em que menores são sujeitos ativos ou passivos, em sua quase totalidade, estão desatualizados. Debatedores do tema se digladiam com dados no início do século, como os do excelente trabalho do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – NEV – “Homicídios de Crianças e Jovens no Brasil, 1980 a 2002”[1]. Apenas os levantamentos “fotográficos” da situação das FASEs[2] ou, como no caso da pesquisa de 2012 do CNJ[3], o perfil do menor internado e índices de reincidência e modalidades delitivas são mais atuais; no levantamento do CNJ, aliás, é importante notar que o primeiro ato infracional que leva os menores ao sistema socioeducativo, em 82% dos casos, se refere a furto, roubo ou tráfico de drogas, percentual que cai para 67% quando verificada a razão “atual” da internação. Outro dado significativo que atesta a necessidade de repensar o funcionamento do modelo de execução das medidas é o de que os atos infracionais cometidos após a primeira internação são mais graves, em especial no que diz respeito ao resultado morte da vítima.

Em meio a tal dificuldade, embora mesmo a eventual atualidade e confiabilidade de dados não viesse a ter o condão de afastar o que se propõe, vê-se por imprescindível, dentro da perspectiva de fortalecimento e de busca pela efetividade do Estado Democrático de Direito no qual nos propusemos viver, tratar de um tema necessário quando se acena com a alteração do conteúdo normativo constitucional voltado à proteção de direitos individuais – no caso, para a redução dos direitos de liberdade – a proibição de retrocesso.

Tendo por objetivo no presente ensaio uma visão enxuta da questão, cumpre destacar inicialmente que a proibição de retrocesso não se confunde com a garantia da irretroatividade de lei. A irretroatividade diz respeito à impossibilidade de que uma nova lei ou entendimento jurisprudencial venha a solapar direitos adquiridos, os atos jurídicos perfeitos e a coisa julgada. A impossibilidade de retrocesso não tem seu foco principal direcionado para a perda de direitos individuais em exercício, mas para a redução do cardápio de direitos garantidos pelo Estado.

Importante frisar que a doutrina da proibição de retrocesso se desenvolve focada na preocupação com a possibilidade de restrição a direitos sociais conquistados, não trazendo a mesma ênfase em relação aos direitos fundamentais individuais.

Christian Courtis[4], contudo, traz claramente a origem da preocupação com o retrocesso de direitos conquistados, bem como se posiciona pela ausência de limites pré-definidos para sua implementação:

“Cabe comenzar por aclarar que la prohibición de regresividad (o prohibición de retroceso, como también se la denomina) forma parte del bagaje teórico tanto del derecho internacional de los derechos humanos, como del derecho constitucional doméstico, al menos en materia de derechos sociales –aunque su aplicabilidad no tiene por qué limitarse a ese campo”.

Ingo W. Sarlet, da mesma forma, também se posiciona pela falta de uma restrição prévia:

Com efeito, reitera-se nesta quadra a possa posição em prol da possibilidade de uma aplicação da proibição de retrocesso a todos os direitos fundamentais, de tal sorte que a designação proibição de retrocesso social, que opera na esfera dos direitos sociais, especialmente no que diz com a proteção ‘negativa’ (vedação da supressão ou diminuição) de direitos a prestações sociais, além de uma ideia-força importante, poderia ser justificada a partir de algumas peculiaridades dos direitos sociais, o que, importa sempre frisar, não se revela incompatível com a complementariedade entre direitos sociais (positivos e negativos) e os demais direitos fundamentais[5].

A posição que aqui se adota é a da impossibilidade de retrocesso em relação ao limite mínimo para a responsabilização criminal. Confessa-se a dificuldade de identificação da natureza do direito – individual ou social –, uma vez que a Constituição impõe deveres sociais – direcionados à “sociedade” – e Estatais de tratamento prioritário (à criança) ao adolescente e ao jovem, na busca de assegurarem os direitos à vida, saúde, alimentação, educação, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e à convivência familiar. Mais: é obrigação dos destinatários da norma proteger jovens e adolescentes de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão[6].

Independentemente da caracterização da natureza de tal direito, é importante se verificar o contrassenso de uma tentativa de redução de maioridade penal diante do conteúdo da norma constitucional. Uma série de direitos são assegurados a partir de uma perspectiva protetiva, uma vez que os menores de 18 anos não possuem capacidade plena para a realização de atos da vida civil.

A possibilidade de acesso e exercício de direitos se constitui em elemento essencial ao exercício da liberdade. A Proposta de Emenda Constitucional n.º 171/93 prevê a redução da maioridade penal, autorizando a criminalização de condutas daqueles que sequer detém a possibilidade do gozo pleno de seus direitos civis, colocando os menores, entre 16 e 18 anos, em uma espécie de vácuo ou limbo, onde não há o menor equilíbrio entre restrição à liberdade e direitos, pois não gozam de tal titularidade.

A inimputabilidade penal para o menor de 18 anos consolidou-se, a partir de 1926, com a entrada em vigor do Código de Menores. Até então, a menoridade penal fixara-se nas Ordenações e nos Códigos Penais do Império e da República, entre 7 e 14 anos. Assim, a utilização do critério biológico dos dezoito anos se constituiu na expressão da preocupação de se afastar da possibilidade de aplicação da lei penal aos menores infratores. A inaplicabilidade da norma criminal a tais autores, contudo, nunca se confundiu com a ideia de impunidade ou de anomia em relação ao adolescente que comete conduta equivalente à definida como crime. Havia um regramento específico, ao menos em tese, sem o peso, os vícios e os flagelos intrínsecos da execução penal.

A construção da cidadania, com a concessão gradual de direitos e obrigações se dá a partir de uma consolidação do amadurecimento da pessoa. É dessa perspectiva que se estabelecem, aos poucos, no ordenamento jurídico brasileiro, direitos de integração ao contexto político e social, como o do voto facultativo e da possibilidade de casar – hipóteses possíveis de aquisição de direitos e assunção de responsabilidades.

A redução da maioridade penal dos 18 para os 16 anos se constituiria em uma imposição abrupta da possibilidade de penalização e de cerceamento da liberdade pretérita à possibilidade de exercício de direitos da cidadania. A perda da liberdade imposta a alguém que sequer teve acesso virtual aos direitos que consolidam a liberdade do cidadão, independentemente dos demais argumentos que se possa utilizar, por si, já se constitui em um retrocesso às garantias fundamentais do adolescente.

Em conclusão, a redução da maioridade penal é uma lesão não só aos direitos dos menores de 18 anos, de forma individual, mas à própria concepção de inviolabilidade dos direitos sociais e individuais adquiridos pela sociedade, a partir de seus embates e conquistas no campo político, expressa na proibição de retrocesso – bastião limite à “criatividade” legislativa no Estado Democrático de Direito.

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[1] Autoria de Maria Fernanda Tourinho Peres, Nancy Cardia e Patricia Carla dos Santos.

[2] O Rio Grande do Sul, em abril de 2015, conta com 1186 adolescentes em medida socioeducativa de internação (1087) ou semiliberdade (99), sendo que tal quantidade representa um déficit de 230 vagas. In http://www.fase.rs.gov.br/wp/wp-content/uploads/2015/04/Pop-da-FASE-por-MS-06-04-2015.pdf.

[3] http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf

[4] La prohibición de retroatividad en material de derechos sociales: apuntes introductorios.

[5] SARLET, INGO. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 12ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. p. 469

[6] Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.